Arbitragem feminina no futebol: um espaço de conquista
A paixão pelos gramados começou cedo. Vanessa de Abreu é formada em educação física e já tem uma grande carreira, com apenas 30 anos de idade. Atualmente está no quadro de árbitros da FFMS (Federação de Futebol de Mato Grosso do Sul) e da CBF (Confederação Brasileira de Futebol). A assistente, que é a grande referência feminina do Estado, já superou de lesão a desrespeito em seus doze anos de profissão.
Nascida em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Vanessa de Abreu teve contato com o futebol muito cedo e sonhou em fazer carreira no esporte. “Desde que eu me entendo por gente eu jogava futebol. Sempre gostei. Aí já na época de faculdade tive que escolher entre continuar jogando - porque os treinos eram no mesmo horário das aulas - e estudar. Como eu estava com 18 anos eu decidi estudar e parar de jogar”, conta a assistente.
A decisão não foi fácil, mas o destino contribuiu para que seus passos continuassem a trilhar dentro do futebol, pois no mesmo ano, 2004, a FFMS ofereceu um curso de arbitragem e despretensiosamente Vanessa se matriculou. “Fiz mais por questão de currículo mesmo”, completa.
Logo em seu primeiro jogo, o machismo por parte dos jogadores e comissão técnica, e muito presente no esporte, foi determinante no andamento da partida. “Mandei expulsar quase todo mundo”, afirma Vanessa aos risos e completa que “quando os técnicos veem que é seu primeiro jogo, que você não tem experiência, eles querem “montar” em cima de você e o fato de ser mulher agrava mais isso. Então eu dei alguns impedimentos que ele achou que eu estava errada e começou a bater boca, falar que lugar de mulher não era ali, era no tanque”.
Foram quatros expulsos nessa partida, todos por ofensa. Mas quem pensou que seria motivo suficiente para Vanessa desistir se enganou. “Eu continuei na época mais por questão de birra, para provar para eles que não é porque o futebol é mais masculino que a mulher não pode trabalhar e não tem a competência. Foi para provar para eles que eu tinha competência, acabei gostando e já estou há 12 anos”, esclarece a bandeirinha.
No seu início de carreira, Vanessa afirma que era radical quando o assunto era as ofensas e preconceitos que sofria. “O direito é dele de falar e o meu de expulsar”, conta. Hoje a experiência na profissão a tornou mais paciente, com jogo de cintura e muita audição seletiva. “Se você levar ao pé da letra tudo que você escuta, não acaba o jogo”, completa.
A profissão
Para fazer parte do quadro de arbitragem da CBF e estar apto para trabalhar nas competições a nível nacional, a entidade todo ano divulga a RENAF (Relação Anual de Árbitros de Futebol), no qual os candidatos devem ser indicados por suas respectivas federações e cumprir determinados requisitos.
Para iniciar a carreira como árbitro da CBF, de acordo com a Composição do RENAF 2016 artigo 15, além da carga horária exigida, devem ter até 40 anos, ter atuado pelo menos em duas temporadas na divisão principal de qualquer federação estadual, sendo uma delas, obrigatoriamente, a última temporada. A quantidade de jogos mínimos é dez, sendo cinco da principal divisão e cinco de outras divisões de futebol profissional. Outro requisito é ter o terceiro grau completo.
Vanessa conta que, por quatro anos, ela foi a única que integrava o quadro feminino de árbitras do seu estado. Ela acredita que os testes físicos acabam sendo os responsáveis pelos baixos números de mulheres na profissão. “Não é uma área fácil, a gente tem que fazer o mesmo teste dos homens, correr igual, não tem diferença e isso acaba dificultando mais para as mulheres. Muitas não conseguem passar no teste físico”, explica a assistente.
As vagas não são democráticas. Há determinada quantidade de vagas para mulheres e homens, mesmo as etapas de seleção sendo a mesma. Um exemplo que reflete essa disparidade é o quadro de árbitros da FFMS (Federação de Futebol de Mato Grosso do Sul) 2016, que atualmente contam com 28 homens e apenas três mulheres, entre árbitros e assistentes.
A possibilidade de ser árbitra central foi cogitada poucas vezes por Vanessa de Abreu, mesmo que financeiramente fosse mais rentável. “O arbitro central ganha 100%, o assistente ganha metade e o quarto arbitro ganha metade do assistente. Eu pensava assim: já que posso ganhar 100% porque vou ganhar metade, né? Apitei alguns jogos e não me identifiquei. A arbitragem é mais para você se identificar, se você se identifica mais como árbitro você nunca vai conseguir bandeirar. E vice e versa”, conta.
A preparação física na profissão é constante. Academia e corrida fazem parte da sua rotina e são custeadas pela própria assistente, o que é motivo de reclamação, “você treina com dinheiro do seu bolso, você que banca seus estudos, no caso pra passar para o quadro da FIFA você tem que falar inglês e espanhol, então não tem ajuda deles para melhorar, só tem cobrança”. Por integrar o quadro da CBF, Vanessa abdica seu tempo em nome das viagens. Ela conta que já teve semanas em que passou cinco dias viajando. Ainda sim, o esforço em nome da paixão não rende o esperado, já que afirma que não conseguir “viver” da profissão.
Até hoje a assistente, que já trabalhou em jogos de tradicionais times como Corinthians, Palmeiras e São Paulo, fala sobre um episódio que, infelizmente, os árbitros e assistente estão fadados a passar. “Em polêmicas negativas eu nunca passei. Passei uma, mas era jogo amador logo no inicio de carreira. O goleiro no caso contestou, veio para cima de mim e quis me agredir”, conta Vanessa.
Vanessa no jogo entre Palmeiras e Ceará pela Série B do Brasileirão de 2013 (Foto: Arquivo pessoal)
O instinto é o grande aliado das decisões em campo, já que como ela mesma conta “nós não temos segundos, e sim, milésimos de segundo para definir”. “Lance que é mais difícil: falta. Porque você não pode olhar para o batedor, você tem que prestar atenção no barulho da batida da bola e cravar na linha. Lances de contra-ataque que, às vezes, eles lançam aquela bola muito longa e você tem que além de correr muito rápido, estar prestando atenção da linha, em falta. Abrange muita coisa né. Pensamos será que eu acertei? Porque assim, ou você levanta ou não levanta. Você não tem tempo de pensar. Ação e reação”, completa.
Sobre se a tecnologia no futebol poderia auxiliar os árbitros, Vanessa acredita que depende dos métodos que vão ser utilizados e sua moderação. O sistema de câmeras, por exemplo, onde o jogador pode contestar a decisão da arbitragem e rever o lance, ela enfatiza que “se for usado em toda situação que eles acharem que a gente está errada, não vai ter jogo”.
Já o chip na bola, que é outra tecnologia testada, ela é totalmente a favor. “Esse negócio do gol ou não gol é muito complicado, até com câmera às vezes você fica em dúvida. Na TV eles passam dez vezes para ter uma certeza se a bola entrou ou não. Uma coisa é você estar parado, olhando só para a bola, igual em caso de pênalti. Agora outra é quando está em deslocamento, prestando atenção na linha de impedimento, em relação a falta. É difícil definir com precisão se foi ou não gol”, explica Vanessa Abreu.
Família
“Meu pai foi comigo fazer a inscrição”, conta Vanessa Abreu sobre quando decidiu fazer o curso da FFMS (Federação de Futebol de Mato Grosso do Sul) para arbitragem, aos 18 anos. Sobre a mãe, a assistente conta que foi de quem mais sofreu preconceito. “Ela não me via no meio de homem, em um lugar totalmente masculino, ela tinha medo do preconceito das pessoas”, explica.
Assim teve que lidar nove anos, até que finalmente ela pudesse aceitar. Hoje a mãe acompanha todos os jogos da filha e é uma das maiores incentivadoras. “Na minha casa os papéis eram bem trocados. O meu pai totalmente liberal e ela a machista da casa. Para ela, a mulher tinha que ficar em casa”, conta a assistente.
Vanessa, que atualmente é noiva, conta que “antes dele tive outros namorados que eu terminei justamente por causa disso, mandou escolher entre ele e a arbitragem. Obviamente que fiquei com a arbitragem. Acredito que na profissão ninguém pode interferir, nem família, marido ou namorado”, afirma.
Presença feminina no futebol
Por ser uma mulher inserida em um esporte que é historicamente masculino, Vanessa fala que sempre teve que mostrar mais resultados para se firmar na profissão. “O homem em geral acha que futebol é uma coisa masculina e não cabe a mulher, e aquela que fala que gosta e entende, eles sempre vão querer que ela prove, mas estamos aí mostrando que conseguimos até melhor que eles”, desabafa.
Para ela, chega desse papo de preconceito em relação a competência feminina, pois um gênero não é superior ao outro, e acrescenta “se no físico temos que fazer o mesmo teste que os homens, já provamos que somos melhores que eles, porque fisiologicamente falando, o homem tem muito mais força que a mulher. Então toda essa discriminação se resume no preconceito”, conclui.
Mesmo ainda com esse preconceito presente no dia-a-dia, a bandeirinha comenta que, pelo menos para ela, a questão vem melhorando aos poucos aqui no estado. Ela afirma que antigamente não davam credibilidade, porque achavam que as mulheres não iam dar conta da partida, mas hoje ela disputa escala de jogo com os homens de igual pra igual.
Não era a hora
A discriminação de gênero foi apenas uma das barreiras que Vanessa enfrentou ao longo de sua carreira. Em 2013 sofreu um acidente de carro, sentiu algumas dores, porém não procurou o médico e continuou sua rotina normal, fazendo treinos um pouco mais intensos, pois iria fazer um teste físico. “Em todos os treinos de perna e glúteo eu sentia a lombar, mas eu achava que era a intensidade do treino que estava aumentando, não levei em consideração, nas férias também não parei os treinamentos, e já comecei a tomar muito remédio para suportar a dor”, explica.
Já no ano seguinte fez o teste e passou, assim estava apta para bandeirar na temporada de 2014. Porém, no seu terceiro jogo não aguentou de dor, “terminei a partida me arrastando literalmente, chegando em casa não dormi, fui pro hospital e descobri uma hérnia de disco que comprimia mais de 50% da minha medula, mais três desvios em três lugares da coluna e nervo ciático”, relembra.
Com a coluna lesionada ficou três meses sem andar. Para os médicos ela tinha que operar e nunca mais ia voltar a correr e arbitrar. “Mas nunca abaixei a cabeça, não quis operar, porque era uma coisa incerta se eu podia melhorar ou não. Optei por não operar e fui pra luta, fisioterapia todos os dias, acupuntura, remédio eu tomei 20 dias e não teve efeito e eu parei, por fim fiz pilates e hidroginástica”, conta.
Depois de sete meses de muito esforço e dedicação, voltou a trabalhar, e com nove meses estava 100% e até hoje não sente mais dor. Para ela o começo do ano foi bem crítico, porém ainda não era a hora de parar na carreira de arbitragem. “Não ia ser uma doença que ia me tirar, eu queria parar bem”, completa.
Futuro
Com a saúde recuperada e o sentimento de dever cumprido, depois de 12 anos de profissão, Vanessa anuncia que 2016 é o último ano da sua carreira como bandeirinha. “Eu não estou parando por causa de alguma pessoa ou motivos, sou eu que quero parar mesmo, foi minha decisão, sem interferência de homem ou família, eu que defini. Foram anos de coisas ruins e boas e agora acredito que cumpri o meu papel”, afirma.
Para o futuro, Vanessa está de casamento marcado em dezembro, e no próximo ano quer engravidar e dedicar seu tempo para o bebê. Sobre retornar a dar aulas como professora de Educação Física ela diz que hoje não pretende, mas que só futuramente vai saber se volta ou não à sala de aula.
* Primeira foto: Bandeirinha faz parte do quadro de árbitros da FFMS e CBF (Foto: Divulgação/FFMS)