Protagonismo feminino: a história da primeira técnica brasileira a dirigir um time masculino
Hoje aos 50 anos, Cláudia Malheiro atualmente vive no Acre e se dedica exclusivamente a sua outra paixão: a agronomia. Natural do Rio de Janeiro, seu interesse pelo futebol veio logo na infância, quando assistia com o pai, botafoguense, partidas pela televisão. Além de técnica, Claudia já jogou futebol feminino de areia, de campo e de salão em ligas amadoras. Para ela “as mazelas divulgadas hoje nos noticiários, acerca deste esporte, são o prenúncio de dias difíceis se não houver uma reinvenção da prática do futebol. E eles serão sempre piores para os times menores”.
De onde surgiu o interesse em ser técnica de futebol?
No período em que morei em Manaus, de 1995 a 1998, participei dos campeonatos de futebol feminino de areia da Ponta Negra, jogando num time patrocinado pela "Locadora Les mans", pelo qual fomos vice-campeãs em 1998. Neste time, várias vezes dirigi os treinamentos, iniciando aí os primeiros passos nessa função.
Houve preconceito, pela escolha, por parte dos familiares e sociedade? Como lidou com isso? A minha família nunca teve qualquer preconceito. Minhas irmãs jogaram futebol comigo e meu esposo e minhas filhas também sempre me acompanharam nos jogos em que participei como atleta. Então, quando passei a dirigir times de futebol, eles continuaram me acompanhando naturalmente. A primeira vez em que dirigi uma temporada de um time de futebol masculino profissional, no campeonato estadual acriano, conta meu esposo que da arquibancada, atrás do banco de onde eu ficava, enquanto o jogo estava 0x0, os torcedores palpitavam: -Ó Professora, avança o fulano da zaga, recua o cicrano, etc. Quando passamos a perder de 1x0, o comentário mais leve, segundo ele, foi: -Ó Dona Mulher, vá tomar conta do fogão lá na sua casa!
Isso fora os xingamentos dos torcedores mais fanáticos, que não queriam seu time perdendo, mesmo no ano anterior tendo ficado no fim da tabela e o meu compromisso ter sido de tirá-lo de lá (naquele ano ficamos em 4º lugar).
No final da partida meu esposo me perguntou se os tinha ouvido e se isso me incomodava de alguma forma. Mas na adrenalina do jogo não se ouve nada da arquibancada, pois ficamos presos no jogo e isso efetivamente não me incomodava. Daí em diante sempre me contou os comentários, nas derrotas e nas vitórias, sempre rimos deles e isso nunca efetivamente me incomodou.
Às vezes sentia que as pessoas estranhavam e muitas admiravam o fato de ver uma mulher técnica de futebol de um time masculino profissional, mas nunca senti preconceito. Desconfiança do sucesso do trabalho, às vezes sim. Mas a resposta vem sempre com o resultado.
Na sua carreira, atuou por quais times? No futebol masculino profissional iniciei minha carreira como auxiliar técnica e depois técnica no Vasco da Gama (do Estado do Acre), onde fui campeã estadual e o dirigi em partida da 3ª divisão do campeonato estadual. Dirigi também o Andirá Futebol Clube (do Estado do Acre) e fomos vice-campeões estaduais.
Treinei ainda as categorias de base do Rio Branco Futebol Clube, tendo vencido também alguns campeonatos estaduais.
Como foi a primeira experiência com técnica? Como falei anteriormente, em 1999 fui auxiliar técnica do time de futebol profissional masculino do Vasco da Gama (do Estado do Acre), quando tive a oportunidade de assumir interinamente a função de técnica e dirigí-lo, inclusive, em partida da série C do campeonato nacional.
Sobre suas conquistas na carreira, quais foram as mais importantes? O Vice-campeonato estadual no Acre com o Andirá Futebol Clube e o título de campeão estadual infantil com o Rio Branco Futebol Clube em 2011 foram os mais marcantes. O primeiro, porque até assumir no ano anterior, quando já ficamos em 4º lugar, o Andirá era sempre o último time da classificação da tabela do estadual acriano e o do infantil, pela alegria e a satisfação que traz o trabalho com os jovens.
Qual a maior dificuldade que enfrentou dentro do futebol? A falta de recursos dos clubes, que obrigados à profissionalização sem puderem ali se manter, trazem diversos problemas extracampo, como o atraso no pagamento dos jogadores e falta de material esportivo e de apoio. A desconfiança dos torcedores ao ver uma mulher no comando, às vezes leva os dirigentes a desconfiarem do nosso trabalho, mas este item sempre ficou bem resolvido ao final de cada etapa.
Cláudia Malheiro é a primeira técnica mulher a dirigir um time masculino de futebol no Brasil (Foto: Manoel Façanha)
Você trabalhou no Acre, um estado que não tem muita tradição no futebol brasileiro. Enfrentou problemas de estrutura ou outro tipo de situação? Sim, nenhum clube acriano possui condições de trabalho dentro de um mínimo razoável. Assim, ele é sempre realizado com muita dificuldade. Alguns clubes não têm sequer campo para treinamento, precisando alugar campos particulares simples.
Os clubes basicamente garantem o pagamento da folha e alguns têm mais um ou outro apoio. Desta forma, minha função de técnica se estendia a buscar também apoio com empresários para conseguir refeições e lanches adicionais aos jogadores após o treinamento, complementação de material esportivo, principalmente bolas e chuteiras, medicamentos, etc.
Num clube em que atuei, não havia verba para remédios, então corri ao meu esposo atrás do “PAITROCÍNIO”. Ele sempre atendeu, pois dizia que durante a temporada dos campeonatos nossa família aumentava. Apareciam mais 25 filhos. Mas brincando disse: -Acho que vou falir. Pois sempre que chamar os meninos para ir à farmácia, todos sempre vão querer ir. Então só pago os remédios injetáveis, pois se tomarem injeção é porque realmente estão precisando dela.
E rindo assim foi feito e lá atravessamos a temporada.
Mas o futebol no Brasil e no Mundo precisa ser reestruturado, devendo haver, inclusive, maior cobrança sobre o planejamento e a condução feitos pelas federações, pois as mazelas divulgadas hoje nos noticiários, acerca deste esporte, são o prenúncio de dias difíceis, se não houver uma reinvenção da prática do futebol e eles serão sempre piores para os times menores.
Como é comandar um time, em um esporte que é historicamente masculino? Em algum momento se sentiu desrespeitada pelos jogadores ou diretoria? E a torcida? Nesta função, sendo o homem ou mulher, se alguma vez faltar respeito dos jogadores ou da diretoria com o técnico, o trabalho se esvai. E posso asseverar que isso nunca aconteceu comigo, o que me deixa feliz. Ao contrário, todas as estórias que tenho para contar falam de respeito, amizade e dedicação de todos os lados, geralmente se estendendo, inclusive, à família dos atletas, esposas, filhos, pais e irmãos.
Quanto à torcida, a desconfiança inicial era muitas vezes cruel. Mas isso é aceitável, principalmente no início dos trabalhos ou de um campeonato.
Por ser mulher, ao longo da sua carreira, teve que mostrar motivos para se firmar na profissão? Por ser um esporte predominantemente masculino, é natural que só tenha tido espaço em função da dedicação dispensada ao futebol e ao trabalho, fruto da paixão nutrida pelo mesmo. A desconfiança inicial é bastante razoável, mas sempre aconteceu dentro de um limite em que a realização do trabalho ao longo da temporada a permitiu contornar.
O que representa para você ser a primeira mulher a comandar um time de futebol masculino no Brasil? Acredita ser um exemplo para outras mulheres? Quando entrei na carreira de técnica de futebol, não tive qualquer intenção de quebrar tabu ou desafiar algum preconceito por adentrar numa atividade masculina. Ela era para mim uma atividade normal e da qual eu gostava, então encarei de forma muito natural, pois já tinha jogado futebol vários anos. O ambiente da prática do esporte de um modo geral, mesmo que não seja de costume juntar os times masculino e feminino e fazer um só, traz muito este convívio entre pessoas dos dois sexos. Isso me dava tranquilidade e a segurança para poder trabalhar num time somente masculino.
O fato de ter sido a primeira mulher a comandar um time de futebol masculino no Brasil foi, assim, uma coincidência, sem qualquer pretensão, mas que muito me honra e me sinto feliz por isso. E quanto a ser exemplo, agora sim, seria muita pretensão me apresentar como tal, mas acredito, sinceramente, que podemos conseguir tudo aquilo que desejamos desde que nos dediquemos a isso e o queiramos do fundo do nosso interior. É necessário persistir.
Em sua opinião, porque ainda é raro ver mulheres trabalhando no meio futebolístico? Acredita que o futebol é um esporte machista? Hoje realmente ainda é raro vermos mulheres trabalhando no meio futebolístico, principalmente no futebol masculino. Isso é natural, pois vimos num processo histórico de evolução e a igualdade de tratamento e ações para ambos os sexos ainda está em construção. Além disso, o futebol sempre foi encarado como um esporte um pouco mais viril. No entanto, hoje já temos bons times de futebol feminino (e geralmente com técnicos homens).
Mas já podemos ver no âmbito do futebol masculino a entrada marcante de mulheres, principalmente na arbitragem, o que não seria fácil de prever em algumas décadas atrás.
O Futebol tem realmente um ambiente historicamente machista. É rara a participação das mulheres na direção e no apoio, mas o comportamento da sociedade hoje já permite a entrada daquelas que são dedicadas a esse esporte, mesmo nos times masculinos, no papel de técnicas e dirigentes e até no campo de apoio, como médicas, fisioterapeutas, psicólogas, nutricionistas, preparadoras físicas, etc.
Acredita que falta algum tipo de incentivo para as mulheres serem inseridas no futebol, como jogadoras, técnicas e árbitras? Que atitudes contribuem para que a disparidade entre os gêneros diminua? Quanto à inserção das jogadoras no esporte, acho que tal já é bem aceito. Não é difícil vermos hoje meninas jogando futebol, na recreação, até mesmo num time misto com meninos. E algumas muito boas, espetaculares. Aqui está faltando que as federações organizem competições em níveis melhores, no mínimo no dos campeonatos masculinos, como em alguns países isso já é feito.
Quanto à inserção como técnica, o seu número reduzido num universo onde os homens são maioria, cria alguma dificuldade. Qualquer dirigente, por insegurança, escolherá o homem se sentir que a mulher é igual, mas não é superior. Isso talvez se vença com o tempo. Mas quero realçar que deveriam aproveitar o marketing de terem escolhido uma mulher como técnica. Isto geralmente gera, no mínimo, curiosidade nos torcedores (mas também dificuldade, pois nenhum time comandado por um homem quer perder para o dela).
Como falamos antes, a nossa sociedade vive hoje um estágio de evolução quanto à igualdade dos sexos, ainda não acabado. Assim, a forma de quebrar possível barreira de aceitação da mulher neste ambiente masculino é encarar a situação como desafio, não temer as críticas e persistir, até os homens se acostumarem com a presença de uma mulher no seu meio. A partir daí, até o ambiente melhora, fica mais respeitoso e harmonioso.
Atualmente está trabalhando com o futebol? Não, agora aos 50 anos, me dedico exclusivamente à minha outra paixão, a da agronomia. Mas mantenho, no meu círculo de amizades, meus antigos jogadores, seus familiares, dirigentes e auxiliares, agora alguns já técnicos, com quem ainda me permito discussões sobre esta atividade cativante, a prática do esporte.
Para você, Chega Desse Papo de ...? Desconfiança machista.
* Primeira foto: Cláudia no comando do Andirá Esorte Clube (Foto: Arquivo pessoal)